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Morre Sebastião Salgado, o fotógrafo da dignidade humana

Morreu nesta sexta-feira (23/5) Sebastião Salgado, aos 81 anos, em Paris. Reconhecido mundialmente por suas fotografias em preto e branco de forte teor humanista, Salgado nasceu em Aimorés, no interior de Minas Gerais, e transcendeu as fronteiras da arte para se tornar um dos mais importantes documentaristas visuais do nosso tempo. Economista de formação, ele iniciou a carreira na área econômica até o início dos anos 1970, quando durante uma viagem de trabalho à África teve um encontro transformador com a fotografia. A partir daí, abandonou a economia e abraçou a vocação de fotojornalista, passando pelas agências Sygma, Gamma e Magnum, em Paris. Com sua câmera – inicialmente emprestada de sua esposa, Lélia Wanick – Salgado desenvolveu um estilo marcante e poético, registrando a realidade com profunda empatia. Em mais de 50 anos de carreira, ele comoveu o mundo ao captar “tanto as maiores belezas naturais, quanto as maiores atrocidades promovidas pelos homens”, sempre incitando à reflexão sobre a condição humana e a urgência da justiça social e ambiental.

Da economia à fotografia humanista

Formado em Economia pela UFES, mestre pela USP e doutor pela Universidade de Paris, Sebastião Salgado atuou como economista antes de se tornar fotógrafo. No início dos anos 1970, enquanto trabalhava na Organização Internacional do Café e realizava missões na África, ele começou a fotografar com a Leica de Lélia, sua companheira. Em 1973, decidiu mudar de rumo e se dedicar integralmente à fotografia documental. Estabelecido na França, Salgado logo se destacou pela visão humanista e pela capacidade de retratar populações marginalizadas com dignidade e impacto visual. Seu primeiro grande projeto foi “Outras Américas”, percorrendo regiões pobres da América Latina na segunda metade dos anos 1970. Em 1981, por acaso, ele fotografou o atentado contra o presidente norte-americano Ronald Reagan – vendeu as fotos mundialmente e financiou com isso sua primeira expedição autoral à África. A partir de então, Salgado passou a realizar séries de fôlego, viajando pelos cinco continentes para documentar histórias de sofrimento, resistência e esperança.

Trabalhadores, refugiados e invisíveis: a missão documental

Ao longo das décadas, Sebastião Salgado voltou sua lente para trabalhadores braçais, refugiados, povos indígenas e populações em vulnerabilidade, construindo uma obra que denuncia injustiças e exalta a resiliência humana. Entre suas obras mais aclamadas, destacam-se:

  • “Outras Américas” (1986): Registro poético e cru das populações rurais e indígenas da América Latina, revelando a vida de comunidades esquecidas no continente.
Equador-1982-1-1 Morre Sebastião Salgado, o fotógrafo da dignidade humana
  • “Trabalhadores” (1993): Monumental projeto que retrata o fim da era do trabalho manual em diversas partes do mundo. As fotografias de mineiros no garimpo de Serra Pelada, no Pará, tornaram-se imagens icônicas da luta e do esforço humano.
FIGURA-2-Fotografia-de-trabalhadores-nordestinos-Sebastiao-Salgado Morre Sebastião Salgado, o fotógrafo da dignidade humana
  • “Êxodos” (2000): Poderosa documentação das migrações e deslocamentos humanos provocados por guerras, perseguições e desastres naturais, dando rosto a refugiados e excluídos em escala global.
i180304 Morre Sebastião Salgado, o fotógrafo da dignidade humana
  • “Gênesis” (2013): Considerada por muitos sua obra-prima, essa série é uma odisseia por paisagens intocadas e comunidades que vivem em harmonia com a natureza – um tributo à beleza primordial do planeta e um alerta sobre a necessidade de preservação.
123a1998e01f0ca9a856c8ee3033560f-gpLarge Morre Sebastião Salgado, o fotógrafo da dignidade humana

Em cada projeto, Salgado buscou mais do que estética: suas imagens carregam um engajamento social profundo. Ele mesmo escreveu, na introdução de Êxodos: “Mais do que nunca, sinto que a raça humana é somente uma. (…) Pessoas fogem das guerras para escapar da morte, migram para melhorar sua sorte, constroem novas vidas em terras estrangeiras…”, sublinhando a humanidade comum por trás das diferenças. Suas fotografias, sempre em preto e branco marcante, prezam pela composição impecável sem jamais explorar a miséria – pelo contrário, ressaltam a dignidade dos retratados mesmo em situações de extremo sofrimento. Esse compromisso rendeu a Salgado comparações a mestres da chamada fotografia humanista e consolidou sua reputação como um cronista visual dos esquecidos.

Reconhecimento global e prêmios

O impacto do trabalho de Sebastião Salgado teve repercussão internacional imediata. Suas fotos passaram a integrar acervos de museus importantes ao redor do mundo, e exposições itinerantes levaram suas mensagens a milhares de visitantes. Consequentemente, Salgado recebeu praticamente todos os principais prêmios da fotografia mundial. Entre eles destacam-se o Prêmio W. Eugene Smith de Fotografia Humanitária, o World Press Photo (várias vezes vencedor), o Prêmio Hasselblad (considerado o “Nobel” da fotografia) e o Prêmio Jabuti de literatura (categoria Reportagem, pelo livro Trabalhadores). Em 1998, ele se tornou o primeiro fotógrafo a receber o Prêmio Príncipe de Astúrias das Artes, honraria espanhola de prestígio internacional. Outros reconhecimentos incluem o Prêmio da Paz do Comércio Livreiro Alemão (2019) e o Praemium Imperiale do Japão (2021), além de várias medalhas e títulos honoríficos. Em 2016, Salgado entrou para a Academia de Belas-Artes de Paris (Institut de France) – foi o primeiro brasileiro a se tornar “imortal” nessa instituição. Mais recentemente, em 2024, recebeu um prêmio pelo conjunto da obra no Sony World Photography Awards, por sua “contribuição destacada à fotografia”. Não por acaso, a Organização Mundial de Fotografia definiu que suas imagens “se transformaram em um símbolo do fotojornalismo contemporâneo”. Um sinal do alcance cultural de sua obra: em 2022, The New York Times incluiu uma foto de Salgado (os garimpeiros de Serra Pelada, 1986) entre “as 25 imagens que definem a era moderna”, sublinhando o caráter icônico de seu olhar sobre a realidade.

Instituto Terra e a defesa do meio ambiente

A partir dos anos 1990, diante das tragédias humanas que testemunhou (fomes, êxodos e genocídios), Salgado também voltou seu olhar para a questão ambiental. Ele e Lélia Wanick fundaram, em 1998, o Instituto Terra, uma organização dedicada ao reflorestamento e à recuperação da Mata Atlântica no Vale do Rio Doce (Minas Gerais), região onde Salgado nasceu. Na antiga fazenda de gado da família, cujo solo estava degradado, o casal iniciou um projeto ambicioso de plantar árvores nativas e regenerar o ecossistema. Mais de 3 milhões de mudas nativas já foram plantadas pelo Instituto Terra ao longo de 27 anos, restaurando centenas de hectares de floresta. Esse trabalho permitiu o retorno de espécies da flora e fauna nativas e a recuperação de nascentes e cursos d’água na região. A iniciativa tornou-se referência mundial em restauração ecológica e desenvolvimento sustentável, unindo conservação ambiental com educação e inclusão social local. “Salgado semeou esperança onde havia devastação e fez florescer a ideia de que a restauração ambiental é também um gesto profundo de amor pela humanidade”, declarou em nota o Instituto Terra ao comunicar o falecimento do fundador. Paralelamente, o fotógrafo engajou-se em causas humanitárias globais, colaborando com organizações como UNICEF, ACNUR (Refugiados), OMS, Médicos Sem Fronteiras e Anistia Internacional. Para Salgado, cuidar do planeta e das pessoas sempre caminhou lado a lado – seu projeto Gênesis e, mais recentemente, o livro Amazônia (2021) refletem essa preocupação em celebrar a natureza e os povos tradicionais, ao mesmo tempo alertando sobre a destruição ambiental.

Legado cultural, social e político

A obra de Sebastião Salgado deixa um legado imensurável na cultura visual e na consciência social contemporânea. Por meio de suas fotografias, ele deu voz aos oprimidos e lançou luz sobre desigualdades muitas vezes ignoradas, influenciando debates humanitários e políticas públicas. Líderes e instituições ao redor do mundo prestaram homenagens emocionadas. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva ressaltou o inconformismo de Salgado com um mundo tão desigual e seu “talento obstinado em retratar a realidade dos oprimidos”, algo que serviu como “alerta para a consciência de toda a humanidade”. Lula afirmou ainda que a obra de Salgado seguirá como “um clamor pela solidariedade” entre os povos. Autoridades brasileiras lembraram-no como “um dos patrimônios culturais do Brasil” e elogiaram o poder de suas imagens como “instrumento de denúncia contra a desigualdade”, ao mesmo tempo em que mostraram “a força dos mais fracos na luta pela vida”. De fato, Salgado conseguia transmitir denúncia e empatia na mesma medida – como definiu a ministra Cármen Lúcia, ele foi “um ser humano a mostrar uma doçura total, mesmo nas denúncias fotografadas das indignidades e feridas do mundo”. Esse equilíbrio entre indignação e sensibilidade fez de sua fotografia um símbolo de resistência e esperança.

Refugiados-ruandeses-em-fila-para-a-distribuicao-de-agua-em-1994-perto-do-acampamento-de-Kibumba-em-Goma-no-antigo-Zaire.-Exodos.-©-Sebastiao-Salgado.-Amazonas-images Morre Sebastião Salgado, o fotógrafo da dignidade humana

Salgado também inspirou novas gerações de fotógrafos e documentaristas. Sua vida e obra foram retratadas no documentário “O Sal da Terra” (2014), dirigido por Wim Wenders e Juliano Salgado (seu filho), que foi indicado ao Oscar. Em cada imagem que capturou – seja de um trabalhador coberto de lama no garimpo, de uma mãe refugiada carregando o filho, ou de uma árvore secular preservada – há um profundo respeito pela dignidade humana e pela beleza do planeta. Sebastião Salgado parte deixando um legado imortal: um acervo fotográfico que não apenas registra a história, mas clama por justiça social e sustentabilidade. “Seguiremos honrando seu legado, cultivando a terra, a justiça e a beleza que ele tanto acreditou ser possível restaurar”, declarou sua família e equipe, enfatizando que seu eterno “Tião” permanece presente. As imagens de Salgado continuarão a inspirar solidariedade e a lembrar ao mundo que, apesar de toda desigualdade e sofrimento, “somos todos iguais em nossa diversidade” – e todos merecem voz, respeito e esperança.

Fontes: BBC News Brasil; Terra; Folha Vitória; Declarações oficiais.

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